Quão verídica a Bíblia é como um livro histórico?

Até que ponto ela pode estar relatando nossa história e por isso devemos respeitá-la?
Afinal que valor histórico ela tem?

Há um excelente livro que responde bem à sua indagação, chamado no original em inglês de "The Bible Unearthed", que se traduz corretamente por "A Bíblia Desenterrada", mas que aqui no Brasil ganhou o provocativo nome de "A Bíblia Não Tinha Razão". Os autores são dois acadêmicos israelenses, Israel Finkelstein e Neil Asher Silberman, que tratam somente da Bíblia Hebraica, equivalente ao Antigo Testamento da Bíblia Protestante (o Velho Testamento da Bíblia Católica inclui alguns livros extras). Os autores usam as mais recentes pesquisas arqueológicas realizadas em Israel, na Palestina, na Jordânia e na Síria para reconstituir a história do antigo povo de Israel, de como e porque seus textos sagrados foram escritos. O grande mérito dos autores é revelar que a maior parte da história do antigo povo de Israel, conforme narrada na Bíblia e ensinada nas sinagogas, igrejas, escolas e faculdades, não passa de lenda, um elaborado "mito de fundação". Não que a Bíblia seja totalmente fantasiosa, há eventos relatados nela que foram comprovados por outras fontes, tanto documentais quanto arqueológicas. Mas no geral, ela é uma interpretação que os judeus da Antiguidade fizeram de seu passado histórico e mitológico, seus desafios políticos presentes (da época em que ela foi escrita, entre os séculos 8 e 5 a.C.) e suas esperanças de um futuro glorioso. Outra coisa importantíssima que o livro em questão esclarece é como surgiu o monoteísmo hebraico, e a que finalidades servia originalmente - basicamente, para fomentar a união do povo num desesperado esforço de resistência contra os poderosos impérios que ameaçavam a sua sobrevivência. O livro apresenta também uma descrição da estrutura literária da Bíblia e inclui abundantes citações textuais, de modo a facilitar o entendimento mesmo para aqueles que nunca leram um versículo bíblico sequer.É um livro que eu recomendo a todos os meus leitores, pois fornece abundantes argumentos para refutar a noção da Bíblia como "verdade revelada" por um deus, que os cristãos têm em tão alta conta. Vocês terão como mostrar que a Bíblia é só um relato histórico-mitológico com fins propagandísticos, que está tão fora de contexto na atualidade quanto um mamute estaria no meio da floresta amazônica!

Para não ficar muito vago, vou aqui tentar sumariar algumas conclusões do livro:
1- Os Patriarcas (Abraão, Isaque e Jacó, este último também chamado Israel), não existiram. Eles eram antepassados míticos das tribos que constituíam o povo israelita na antiguidade, e foram reunidos numa mesma família pelos escritores do livro do Gênese, a fim de reforçar ideologicamente a unidade do povo.2- Não houve o cativeiro no Egito, nem a fuga pelo Sinai capitaneada por Moisés. Não há nenhum registro documental nem arqueológico da presença israelita no Egito ou no deserto do Sinai.3- Não houve a conquista de Canaã (antigo nome da Palestina), a "Terra Prometida", pelos israelitas, sob a liderança de Josué. Na época em que isso teria acontecido, Canaã era uma província do Novo Império egípcio, mantida sob atento controle pelos faraós, que jamais permitiriam uma perturbação como essa em seus domínios. A primeira menção histórica aos israelitas é justamente numa campanha de um faraó, que efetuou uma expedição punitiva a Canaã, e lista os israelitas entre os vários povos da região que foram castigados e espoliados.4- As pesquisas arqueológicas também comprovam que a cultura material (construções, cerâmica, etc.) associada aos israelitas emergiu gradualmente em Canaã, e não veio de fora como numa invasão. Os israelitas eram, eles mesmos, cananeus. A diferença era que, enquanto os israelitas viviam em pequenas aldeias nas áreas planálticas e semidesérticas e se dedicavam à pecuária, os outros cananeus eram povos agrícolas e urbanizados que habitavam as planícies e os vales mais férteis. Quando o domínio egípcio e a cultura Cananéia entraram em decadência, por vários fatores combinados, entre os séculos 12 e 10 a.C., os israelitas tornaram-se hegemônicos naquela região, mas não expulsaram nem exterminaram os cananeus, e sim os assimilaram gradualmente em sua sociedade.5- Segundo o relato bíblico, as tribos israelitas foram unificadas num reino por Saul, ao qual sucedeu Davi, que teriam consolidado o reino vencendo os inimigos filisteus, e Salomão, que teria levado o reino ao seu ponto máximo de riqueza e poder. Após a morte de Salomão, porém, este reino glorioso teria se dividido em dois: o do norte, que conservou o nome Israel, e o do sul, com o nome de Judá. 6- Contudo, o reino unificado de Saul, Davi e Salomão, não passa de uma Era de Ouro mítica, sem menção nos documentos históricos dos povos vizinhos, nem vestígios arqueológicos na própria Palestina condizentes com sua suposta grandeza. Em especial, há evidências razoavelmente seguras de que o reino de Judá foi fundado por um certo Davi; mas ele não passava de um líder tribal, e seu filho Salomão não deve ter sido muito mais do que isso também. Não há nenhuma evidência arqueológica do magnífico templo e do suntuoso palácio que Salomão teria construído em Jerusalém, que na época em que este rei teria vivido não passava de um vilarejo. As fortalezas que teriam sido construídas por Salomão por todo seu vasto reino datam de épocas mais recentes. 7- Os reinos de Israel e Judá constituíram-se no século 9 a.C. independentemente um do outro. O reino de Israel era mais rico, populoso, cosmopolita e inserido na conflituosa geopolítica do Oriente Próximo; o reino de Judá era pobre, despovoado, atrasado e isolacionista. E tanto os israelitas quanto os judaítas eram politeístas e idólatras; Javé era seu deus principal, mas não o único.8- Somente no final do século 8 a.C., quando o reino de Israel foi destruído pela poderosa Assíria (um Estado imperial sediado no norte da Mesopotâmia), e a maior parte de sua população deportada, que o reino de Judá ganhou alguma importância. Os remanescentes de Israel se refugiaram no reino do sul, e os reis de Judá ambicionaram expandir seu reino para o antigo território de Israel. E ainda havia a constante ameaça da Assíria.9- Tudo isso ensejou um movimento de reforma política e religiosa que unificasse ideologicamente o povo de Judá e assimilasse as antigas tradições de Israel. Assim surgiu, no século 7 a.C., o monoteísmo judaico: o ideal de um único deus (Javé) adorado num único templo (em Jerusalém) por um único povo (Israel) governado por uma única dinastia (a de Judá). 10- As lendas, mitos e folclores tanto de Judá quanto de Israel foram costuradas num único relato de origem comum - as peregrinações dos Patriarcas, o cativeiro e a fuga do Egito, a conquista de Canaã, etc. A história dos dois reinos também foi reinterpretada: surgiram os mitos do reino unificado de Israel sediado em Jerusalém (a capital de Judá) e do posterior Cisma (a divisão do antigo reino em dois). Segundo esta reinterpretação histórica, o reino de Israel teria sido destruído como castigo de Javé por seu povo ter adorado outros deuses, e o mesmo destino teria o reino de Judá, se seu povo não se convertesse de todo o coração a Javé.11- Quando o Império Assírio desmoronou, os sonhos de independência de Judá foram desfeitos primeiro pelo Egito, e depois pela Babilônia. Uma revolta judaíta levou à destruição de Jerusalém pelos babilônios, e à deportação de grande parte da população do reino para a Babilônia. O "Cativeiro em Babilônia" obrigou a nova reinterpreação do passado histórico-mitológico do povo. O reino de Judá teria sido destruído porque o povo persistiu em suas práticas idólatras, atraindo a ira divina. Haveria, porém, a chance de restauração do reino, caso o povo do exílio se mantivesse fiel ao seu deus. A refundação do reino seria obra de um dependente de Davi - o Messias. 12- Quando a Babilônia foi conquistada pelo rei Ciro da Pérsia, os remanescentes de Judá foram autorizados a regressar à sua terra e a reconstruir Jerusalém - mas não ganharam, obviamente, sua independência, permanecendo como súditos dos reis persas. Foi nessa época que os últimos livros da Bíblia hebraica foram escritos, e o monoteísmo judaico finalmente foi consolidado. Era agora não mais um suporte ideológico precário de uma dinastia, mas um forte traço de identidade do povo judeu, onde quer que eles estivessem.A Bílbia Hebraica é isso: um aglomerado de mitologia e história dos antigos israelitas e judaítas, e que serve até hoje de fundamento da identidade étnica dos judeus. É um caso raro de história contada pelos perdedores - os que foram oprimidos, massacrados, deportados. E eles a contaram da maneira que era usual aos povos antigos: misturando as ações humanas com os desígnios divinos.
Sobre como o monoteísmo judaico foi legado à Civilização Ocidental, algo que não é abordado no livro que indiquei, foi mais ou menos assim...Durante o domínio persa, os judeus absorveram algumas doutrinas do Zoroastrianismo (a religião dos persas), como as crenças num antagonista malévolo do divindade, na ressurreição dos mortos, no Paraíso e no Inferno e no Juízo Final. Não era uma coisa universal, porém; havia seitas judaicas que assimilaram essas crenças, outras não. Uma das seitas judaicas que assimilaram essas doutrinas zoroastrianas era a dos nazarenos, fundada já no tempo da dominação romana por um "candidato a Messias", chamado Jesus, que foi executado pelos romanos por crucifixão – por sinal, um castigo reservado a subversivos políticos. Seus seguidores mantiveram porém sua crença de que ele era o Messias, afirmando que ele havia voltado dos mortos e retornado ao céu, de onde voltaria "em breve" para cumprir sua missão de restaurar o reino de IsraelUm dos discípulos de Jesus, chamado Simão e apelidado Pedro, convenceu os outros a admitir não judeus na seita. Surgiu então uma polêmica sobre se estes gentios (como os judeus chamavam quem não era judeu) convertidos deveriam se submeter às inúmeras prescrições do judaísmo, como a circuncisão, as proibições dietéticas, etc.. Essas determinações eram causa de forte resistência da parte dos novos convertidos.Outro dos líderes da seita, um judeu educado na cultura grega e possuidor de cidadania romana, de nome Saulo e apelido Paulo, que dedicava sua carreira a converter os gentios, convenceu os outros líderes nazarenos de que os não-judeus convertidos não precisariam seguir todos aqueles preceitos do Judaísmo.Mas Paulo não parou por aí. Ele aos poucos reinterpretou as doutrinas da seita judaica dos nazarenos, a começar pelo próprio papel do seu fundador: Jesus deixou de ser o Messias, enviado por Javé a fim de restaurar a grandeza de Israel, para virar o Cristo, o próprio deus encarnado, que se sacrificara para redimir toda a humanidade de seus pecados! Dessa forma, Paulo transformou uma seita judaica restrita numa religião “universal” - o Cristianismo. Paulo acabou rompendo com os discípulos originais de Jesus, que não podiam aceitar tamanha distorção da mensagem original de seu mestre. Eles inclusive denunciaram Paulo às autoridades romanas como um agitador. A seita nazarena original continuou existindo paralelamente às outras seitas judaicas e ao nascente Cristianismo, até o século 2, pelo menos. Foi quando eclodiu uma revolta judaica liderada por outro pretenso messias, chamado Shimon bar Kochba, duramente reprimida: no ano 135 d.C., os exércitos romanos exterminaram 580 mil judeus, e expulsaram os que sobreviventes da Palestina. Todas as seitas judaicas então existentes, inclusive a dos nazarenos, se extinguiram gradualmente, com exceção de uma: a dos fariseus, que originou o Judaísmo rabínico moderno. Quanto ao Cristianismo paulino, continuou a ganhar popularidade entre os gentios, apesar de ocasionais perseguições pelas autoridades romanas (pelo fato de os cristãos se recusarem a prestar o culto aos imperadores, o que era visto como ato de deslealdade). Até o ponto em que se tornou mais conveniente para as imperadores romanos tolerá-lo (a partir de Constantino), e por fim torná-lo religião oficial (com Teodósio). Surgiu assim a Igreja Católica Romana; outras igrejas, como a Ortodoxa Grega e as protestantes, surgiram a partir de divergências políticas e doutrinárias.